O Mulato (1881)
Aluísio Azevedo
H.Garnier, Livreiro-editor
Rio de Janeiro, e Garnier Irmãos, Paris, 1889

Tempo da ação: final do século XIX. Centrado na figura de Raimundo, belo mulato de olhos azuis, que, após estudos na Europa, volta a São Luís, formado em Direito, para esclarecer assuntos de herança e o mistério do seu nascimento. Caso de amor com Ana Rosa, filha do tio que o acolhe e que impede o seu casamento: sabe que ele é filho da escrava Domingas. Retrato negativo da cidade e da sociedade local. Amor, sedução crime, impunidade. Ao fundo, denúncia de preconceito racial, anticlericalismo. Vontades vencidas pelo determinismo. Bem recebido na Corte, execrado na província de origem, o que obrigou o escritor a vir para o Rio de Janeiro.



Fragmentos do livro:

"Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. (…) A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada de mulher cantar em falsete a "Gentil Carolina era bela"; doutro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e me-lancólico: "Fígado, rins e coração!" Era uma vendedeira de fatos de boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as ilhargas maternas, as cabeças averme-lhadas pelo sol, a pele crestada, os ventrezi-nhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam, empinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a rua, suando, vermelho, afogueado, à sombra de um enorme chapéu de sol."



"Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes olhos azuis que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sobre a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço claro, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica de sua fisionomia eram os olhos — grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transpa-rentes de uma aquarela sobre papel de arroz."



"O Dias, que completava o pessoal da casa de Manuel Pescada, era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco, que mal denuncia na casca a podridão interior. Todavia, nas cores biliosas do rosto, no desprezo do próprio corpo, na taciturnidade paciente daquela exagerada economia, adivinha-se-lhe uma idéia fixa, um alvo para o qual caminhava o acrobata, sem olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre uma corda tesa. Não desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos fins; aceitava, sem examinar, qualquer caminho, desde que lhe parecesse mais curto; tudo servia, tudo era bom, contanto que o levasse mais rapidamente ao ponto desejado. Lama ou brasa — havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo — enriquecer. Quanto à figura, repugnante: magro e macilento, um tanto baixo, um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos."



"— Mulato! Esta só palavra explica-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos que a sociedade do Ma-ranhão usara para com ele. Explicava tudo; a frieza de certas famílias a quem visitara: a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D.Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: "Ora mire-se!" a razão pela qual, diante dele chamavam de meninos os moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até ali desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: "Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também o foste!" — Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal ouvia na tempestade do seu desespero, a natureza não cria cativos! Tu não tens a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no Brasil! E na brancura daquele caráter imaculado brotou, refervilhando logo, uma ninhada de vermes destruidores onde vinham o ódio, a vingança, a vergonha, o ressentimento, a inveja, a tristeza e a maldade."